Um dia nas gravações do "Preço Certo"

De luvas pretas sem pontas e com uma camisola da mesma cor onde um macaco com headphones e óculos de sol grita “PARTY”, o Betão vai ensinando coreografias às cento e cinquenta pessoas de todo o país que se reuniram naquela tarde em Alcochete para a gravação de três episódios em catadupa do Preço Certo. De braços no ar, o público grita, com uma euforia que só visto: “Qual… O Preço… Desta… Montra… Finaaaaal… Oeeeeehhhhhh”.
Aproveito o ensaio geral da atuação musical da Cláudia Caramelo para conversar com a produtora do programa, que me explica os critérios para se poder jogar ao Preço Certo: não se pode ter participado nos últimos dois anos e nunca se ter levado a montra final para casa. Fala-me do ambiente único que ali se vive, pelo qual responsabiliza quase exclusivamente Fernando Mendes, e partilha comigo uma pequena amostra das histórias mais rocambolescas, desde o homem que trouxe consigo uma urna pequenina a outro que escondia postas de bacalhau presas no casaco, passando ainda por outro que trouxe para o estúdio um galo vivo, que depois ofereceu ao Fernando Mendes.
Vim visitá-los a propósito do trigésimo quinto aniversário da primeira emissão do programa, na altura apresentado pelo Carlos Cruz (rapidamente substituído pelo Nicolau Breyner), mas, ao olhar em redor, noto que a equipa de produção tem camisolas ligeiramente ruças alusivas aos vinte anos do programa. Percebo que o tempo aqui é contado em a.M. e d.M. — traduzindo, antes de Mendes e depois de Mendes. O programa só nasceu verdadeiramente em 2003, no dia em que o Mendes pisou o palco pela primeira vez, depois de, como agora me explicam, ter superado no casting o Kapinha, o Ricardo Carriço e a Isabel Angelino.
Mal o Mendes entra em palco, começa a abanar a cintura e soltam-se-lhe os suspensórios. Não é preciso grande argúcia para percebermos que os erros, se não fazem parte do guião, são pelo menos nele incorporados como bem-feitorias. Se os operadores de câmara não temem cair é porque, longe de constituir motivo de embaraço, a queda seria uma generosa oferta a uma dinâmica que vive do imprevisto.
Atrás de nós, e indiferente a estas minhas reflexões, o Betão conta ao público a história de um participante que viu ser anunciada uma semana de férias em regime de tudo incluído e soltou um “eish, ca granda merda”. Era no hotel onde trabalhava, sorte macaca. O Betão conta esta história exemplar para pedir que, aconteça o que acontecer, os participantes finjam sempre entusiasmo, mas, pela amostra até agora, não será preciso fingir grande coisa.
Saímos dali para os bastidores, onde encontramos finalmente a estrela da companhia. Está sentado num sofá com um ar absolutamente despreocupado, mas, ao ver-nos, substitui a existência relaxada pela urgência de nos receber bem, perguntando-nos se precisamos de alguma coisa e pedindo-nos para fazermos como se estivéssemos em casa, como se em nossa casa fosse comum haver — passe a publicidade — Dacias Sanderos no meio da sala, a encher de óleo as carpetes, ou multidões a gritar que “Roda Roda Roda Roda Roda”. Agradecemos a simpatia e perguntamos-lhe se podemos acompanhar a sessão de maquilhagem. Ele sorri e diz que não faz cá “dessas coisas”, parecendo considerar absurda a ideia de alguém se maquilhar antes de ir brincar com os amigos.
O programa está prestes a começar. Vêm chamar-nos para o palco e eu não tiro os olhos do Mendes, à procura de uma qualquer superstição, um qualquer vestígio que me prove que o que se vai passar a seguir é importante, ou pelo menos diferente do que acontece quando as câmaras estão desligadas. Nada. Fernando Mendes desce e nós descemos com ele. Alheado dos gritos que, atrás de nós, chamam pelo seu nome, Fernando Mendes vai posando para as fotografias, reproduzindo truques que decerto terá aprendido no teatro e que facilitam o trabalho do fotojornalista (não sou grande entendido em fotografia, mas a mim ninguém me tira da ideia que o bom do fotógrafo teve uma tarde santa, bastando-lhe, para obter fotografias vencedoras, apontar a câmara na direção de um Fernando Mendes que ora olhava especado para a televisão onde o programa ia sendo transmitido, ora imitava o seu próprio rosto reproduzido num alvo com balões para um dos jogos do concurso, ora espreitava por entre o cenário, deixando apenas entrever um olho, o nariz e a boca, numa versão trauliteira da cena célebre do Shining).




▲ Tudo parece simultaneamente ensaiado e genuíno. Os concorrentes falam ao telemóvel e conversam entre si, os operadores de câmara circulam despreocupadamente pelo estúdio
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
O programa começa então com uma ovação ao ex-Gordo e tudo parece simultaneamente ensaiado e genuíno. Os concorrentes falam ao telemóvel e conversam entre si, os operadores de câmara circulam despreocupadamente pelo estúdio, parecendo não prestar atenção à imagem que captam, enquanto as assistentes — a Teresa e a célebre Lenka — surgem pela lateral do estúdio, acenando aos espectadores. Mal o Mendes entra em palco, começa a abanar a cintura e soltam-se-lhe os suspensórios. Não é preciso grande argúcia para percebermos que os erros, se não fazem parte do guião, são pelo menos nele incorporados como bem-feitorias. Se os operadores de câmara não temem cair é porque, longe de constituir motivo de embaraço, a queda seria uma generosa oferta a uma dinâmica que vive do imprevisto. Mas dizia eu: os suspensórios soltam-se levemente, a régie põe a música do Benny Hill a servir de fundo e o Mendes logo os despe, deixando-os a pairar em frente às calças como se nada tivesse acontecido.
Tudo isto parece apontar para uma ideia de entretenimento avessa à que rege a televisão, por exemplo. Tudo o que tendemos a associar a conceitos vagos como profissionalismo é aqui deitado sistematicamente pela janela. Tudo o que seja maquinal e planeado constitui apenas a primeira camada sobre a qual depois o programa se construirá. Achar que os telespectadores ligam religiosamente a televisão às sete da tarde na RTP1 para assistir aos jogos, há décadas iguais, do Preço Certo seria o mesmo que acharmos que as centenas de emigrantes que todos os verões atravessam a Península Ibérica percorrem estes milhares de quilómetros em busca de paisagens verdejantes ou pequenos-almoços mais baratos. Mas já cá voltaremos.
Frigoríficos, trotinetes e uma frigideira a 35 eurosEntretanto, entra no estúdio o Marinho, o terceiro assistente do Mendes. Traz calças brancas e uma camisa estridente que lhe merece alguns piropos dos operadores de câmara. Chega ainda a apertar o cinto das calças. Um membro do público — que lhe fala como se se conhecessem desde a infância só porque há décadas o Marinho, enquanto vai apontando para monumentais arcas frigoríficas e divertidas trotinetas a motor, acompanha a solidão daquele homem — repreende-o por estar atrasado e diz-lhe que assim o patrão vai cortar no ordenado. O Marinho sorri e distribui apertos de mão.
Em palco, uma concorrente pousa em cima da mesa um saco de compras do Lidl, sem que ninguém pareça minimamente preocupado com a publicidade grátis que assim vai sendo feita em horário nobre. Por motivos que me escapam, o Mendes tem agora o que me parece ser um colar de telefone pendurado nas orelhas. Na plateia, o senhor Ramiro traz a placa com o nome colada do avesso sobre a sua camisa axadrezada, o senhor Mestre faz uma videochamada para alguém, a dona Fernanda e o senhor João discutem porque o senhor João foi incapaz de deixar passar que a frigideira sempre custava 35 euros, como ele estava cheio de dizer. A dona Joana encolhe os ombros, sacode com a mão a teimosia do marido e desvia o olhar para o Marinho, agora encostado a um incrível medidor de tensão. Um técnico de som provoca o João, perguntando-lhe se ele se fica.
Tudo isto está mais perto de um grupo de amigos a jogar ao lencinho do que de um programa de televisão em canal aberto. E os que sobranceiramente nos dizem que o Preço Certo é aborrecido, os que juram tão chatamente não perceberem qual o interesse de ver os mesmos jogos, ainda por cima tão simples, serem disputados uma e outra e outra vez, os que teimam em recordar-nos que tudo isto é feito à custa dos contribuinte, não entendem nada do que é estar vivo.
(Em alguns momentos, a leve melancolia que de vez em quando vou sentindo parece-me gerada por tudo isto me fazer lembrar os teatrinhos que na minha infância organizávamos para os adultos durante as férias de verão.)
Os concorrentes descem à vez ao palco, mas nunca são o emprego em que trabalham nem a idade que têm. São o sítio de onde vêm e o clube que apoiam. São os vinhos que trazem ou o graúdo saudoso que veio à televisão só para mandar um abraço ao irmão lá longe que hoje faz anos. Ao lado deles, o fotojornalista quase é filmado, quase tropeça nos fios. Ninguém quer saber. Não há ninguém preocupado em esconder as costuras, que, percebo agora, são o vestido.
O meu olhar regressa uma e outra vez a Fernando Mendes, que, além de apresentar o programa, distribui bolos pela primeira fila, dá indicações ao concorrente a seu lado, posa para o fotojornalista, recebe instruções de alguém que eu não vejo e faz um gesto na minha direção, para perceber se nada me falta. Mas o Fernando é meu pastor e nada me faltará. O Mendes faz tudo isto ao mesmo tempo, lançando cada vez mais bolas ao ar sem que nenhuma caia ao chão, mas se alguém o interrogasse, se alguém chegasse ao pé dele e o acusasse de brilhantismo, ele negaria as acusações até à morte e juraria que nem a porcaria de uns suspensórios consegue trazer presos à cintura, onde é que já se viu isto?
Lenka e Marinho: gente como nósEnquanto o Fernando Mendes joga ao goling com um concorrente que compete para levar para casa uma espectacular churrasqueira patrocinada pela Rubis Gás, a Lenka e o Marinho passeiam-se pelos bastidores e sinto que se eu agora os interrompesse, eles se deixariam ficar à conversa e esqueceriam o programa lá ao fundo, como nos acontece quando vamos à cozinha buscar uma cerveja e nos deixamos ficar à conversa com o filho do anfitrião, esquecidos, para desespero dos nossos amigos, de que é a nossa vez de lançar os dados.




▲ Os concorrentes descem à vez ao palco, mas nunca são o emprego em que trabalham nem a idade que têm. São o sítio de onde vêm e o clube que apoiam
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
E à medida que o tempo passa, vai-se tornando cada vez mais claro para mim que tudo isto está mais perto de um grupo de amigos a jogar ao lencinho do que de um programa de televisão em canal aberto. E os que sobranceiramente nos dizem que o Preço Certo é aborrecido, os que juram tão chatamente não perceberem qual o interesse de ver os mesmos jogos, ainda por cima tão simples, serem disputados uma e outra e outra vez, os que teimam em recordar-nos que tudo isto é feito à custa dos contribuinte, não entendem nada do que é estar vivo. O público que assiste a isto (e uma parte considerável desse público já terá participado ou pelo menos assistido da plateia) não o faz por cobiçar uma magnífica liquidificadora ou uma deslumbrante máquina de café. Assistem a isto porque ao fazê-lo recordam, melancolicamente mas de sorriso no rosto, a sua infância, uma infância que regressa uma e outra tarde, pairando suspensa sobre o profissionalismo sisudo da grelha televisiva.
Chegámos a meio do programa e a ação pára para que o Mendes possa mandar “um beijo à dona Elisa”, que vê todos os dias o programa e é filha do Nandinho, que tem uma churrasqueira lá para os lados da Charneca da Caparica onde se come uma picanha “que é daqui, ó”. Depois, anuncia-se o momento musical, com Ginga Quente, uma mistura de axê com funaná na voz de Cláudia Caramelo, agora retornada ao palco com um vestido curto rosa-choque e saltos altíssimos. É espantoso notar que, durante os breves minutos da atuação, parece cair sobre todos uma outra seriedade. Os assistentes dançam, o público baila, o Mendes faz caretas para a câmara mas aquele é o momento da Cláudia Caramelo, uma convidada naquela casa, e não há quem queira desviar dela os holofotes.
A ginga acaba, a montra final já não vem longe e aproveito para conversar primeiro com a Lenka e depois com o Marinho. Descubro que ela é professora de ioga e ele pai solteiro de quatro crianças e funcionário da loja da Segurança Social ali na 5 de Outubro. Alguns minutos depois, ao entrevistar a terceira assistente, descubro que está grávida de quatro meses e trabalha como podologista em Matosinhos e fico a pensar se, mais do que a beleza ou fotogenia, o critério decisivo não será o de os assistentes estarem anonimamente mergulhados no mundo, bem no meio de nós, para que, ao vermos o programa, reconheçamos nele a nossa vida.
Pergunto-lhe os motivos de tanto sucesso e ele envaidece-se ao falar do país real, das pessoas que saem do café e que pedem para que a missa termine mais cedo só para o ver. Percebo que há aqui algo que o deixa genuinamente feliz e tento saber qual a melhor coisa que tantos anos de concurso lhe deram. "Eu nunca quis ser um grande ator, sabes?", responde-me. "Só queria ser um ator popular."
Sou retirado do meu estupor pela chegada da hora da montra final. Fernando Mendes consulta ostensivamente as folhas, como se quisesse parecer menos preparado do que evidentemente está, e depois vai limpar as mãos. Em vez de o fazer discretamente, desenrola uns três metros de rolo de papel de cozinha, limpa as mãos e depois ainda aproveita as sobras para polir a careca de um concorrente de ar gaiteiro. Nesse momento, o meu olhar cruza-se com o dele e o Mendes aponta para a cabeça e murmura: “Sou maluco”.
“Cansado? Eu não faço nada. Se estivesse a arcar tijolo é que estava bem tramado”Os prémios da montra final foram apresentados, o público gritou e o senhor Pereira ganhou ou perdeu enquanto eu tirava notas no meu caderno, tendo, como sempre me acontece, passado ao lado do momento alto daquele dia. A gravação termina e o público sai para um intervalo de quinze minutos entre um episódio e outro. Já com o estúdio vazio, sento-me na plateia ao lado do Mendes, para finalmente podermos conversar.
Apesar de saber que acabámos agora apenas o primeiro de três episódios, começo por lhe perguntar se está cansado. Ele olha para mim como se eu tivesse acabado de dizer a maior estupidez e responde-me: “Eu não faço nada. Se estivesse a arcar tijolo é que estava bem tramado”. Depois, descreve o seu trabalho como o de um ator e não de um apresentador e conta-me que “da primeira vez que vieram aí os ingleses” (“ou americanos, sei lá”, acrescenta), não queriam que o programa fosse assim, “queriam-no mais sério”. O Mendes foi falar com a produção e disse que só sabia ser assim, não tinha vocação de apresentador e não estava disposto a deixar de ser um ator de revista só para agradar “àqueles estrangeiros engravatados”. O tempo deu-lhe razão e as versões europeias do programa tentam desde aí seguir-lhe o exemplo.




▲ Os assistentes dançam, o público baila, o Mendes faz caretas para a câmara
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Pergunto-lhe os motivos de tanto sucesso e ele envaidece-se ao falar do país real, das pessoas que saem do café e que pedem para que a missa termine mais cedo só para o ver. Percebo que há aqui algo que o deixa genuinamente feliz e tento saber qual a melhor coisa que tantos anos de concurso lhe deram. “Eu nunca quis ser um grande ator, sabes?”, responde-me. “Só queria ser um ator popular.” A franqueza deixa-me atarantado. Farto de ouvir pessoas sérias ridicularizarem a vontade de popularidade (contudo, perseguindo-a com tudo), foi preciso vir o Fernando Mendes lembrar-me que a vontade de popularidade é não apenas uma ambição comum, mas também um desejo de amor e, quem sabe, uma manifestação das saudades que o Mendes sente do pai.
Fico dois ou três minutos a tentar recompor-me desta e quando volto à conversa ele está a falar da sua comoção quando participantes mais velhos lhe oferecem artesanato feito à mão, está a partilhar comigo o dia em que teve de apresentar o programa logo depois de saber que a mãe tinha morrido e a contar-me quanto suou na primeira emissão, convencido de que não tinha jeito nenhum para aquilo.
E depois despedimo-nos, para que o público se volte a sentar na plateia, para que ele volte a entrar em palco e para que eu possa, enfim, regressar a Lisboa, ainda com a cabeça a andar à roda. Roda. Roda. Roda.
“Passeio das Virtudes” é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.
observador